Thursday, June 08, 2006

Capitulo 1

Os olhos do Fernando estavam colados ao monte de papéis que estava em cima da sua secretária. Uma petição inicial fresquinha que tinha sido distribuída nesse dia. Involuntariamente, o Fernando sorria, a pensar que ia espremer qualquer coisa a partir daquilo. O sorriso era sobretudo nostálgico, porque hoje em dia aquele esquema já representava muito pouco do seu rendimento. Mas tinha sido por aí que ele tinha começado, e aquilo dava-lhe gozo.

Tinha lido os cerca de trezentos artigos em menos de um quarto de hora. Na diagonal, pois claro, mas tinha sido mais do que o suficiente. O português apresentava-se aos solavancos. Pelo menos três pessoas diferentes tinham trabalhado naquele texto. Mas o conteúdo era de apreensão simples: uma empresa pedia uma indemnização com fundamento num fornecimento de produtos defeituosos. O montante solicitado era elevado, mas o mais importante era a identidade da empresa visada: tratava-se de uma sociedade cotada. Uma óptima oportunidade, portanto. Antes de sair para a rua, para utilizar a cabine telefónica que se encontra em frente à linha dos táxis, o Fernando foi devolver a petição. Porque ela não pertencia à sua vara. Tinha sido um amigo de outra vara que tinha deixado os papéis em cima da sua mesa “para ver se lhe interessava”.

Quando regressou, estava um rapaz novo debruçado sobre o balcão de atendimento. O Fernando ignorou-o e foi sentar-se à sua secretária. Ao sentar, reparou que os seus sapatos estavam sujos. Retirou um lenço de papel de uma gaveta da sua secretária e começou deliberadamente a limpar os sapatos.

Entretanto, o rapaz dizia coisas. Tentava chamar a atenção do Fernando, repetindo que apenas pretendia uma informação. O Fernando perguntou qual era o número do processo e o advogado estagiário respondeu. Sem pestanejar, o Fernando disse que esse processo estava com a juiz.

“Mas, eu só queria saber se a outra parte já se pronunciou em relação ao despacho saneador...”.
“Já lhe disse que o processo está concluso!” rosnou o escrivão. O advogado estagiário começava a desesperar. Não queria acreditar que o energúmeno do funcionário judicial não era capaz de se virar para o olhar directamente enquanto lhe dirigia a palavra.

Fernando Alves, escrivão de direito no Palácio de Justiça de Lisboa, não percebia porque é ele que tinha que aturar este tipo de coisa. Tantos anos de trabalho, uma carreira sindical brilhante, a capacidade de mandar matar uma pessoa através da realização de um simples telefonema, e estar sujeito a isto. Arrependia-se sempre de ficar na secretaria durante a hora do almoço. Parece que todos os dias aparecia um idiota a fazer perguntas e ele não tinha alternativa – era o único que lá estava – se não responder. No entanto, era a única forma que ele tinha de combinar discretamente os seus encontros com a Palmira, escrivão auxiliar de outra vara, e isso compensava o incómodo.

A Palmira, por sua vez, não percebia porque é que eles não comunicavam por e-mail ou por SMS. Mas o Fernando era paranóico. O seu extremo cuidado tinha sido adquirido enquanto Presidente da Direcção Nacional do sindicato. Ele sabia que todo o cuidado era pouco e, como consequência, todas as conversas que mantinha eram presenciais, em lugares públicos.

Mal tinha saído o advogado estagiário, derrotado, e Palmira Ferreira de Menezes entrou de rompante. Sempre trajada de blusa branca e saia preta, hoje vinha com um penteado diferente. Fernando fez questão de não mencionar o novo penteado, em que reparara logo. Com cerca de 40 anos, casada com uma filha, a Palmira tinha umas mamas fenomenais. Hoje, estas esticavam o tecido da blusa.

“Vemo-nos logo à noite?”, perguntou.
“Claro fofinha, às dez na entrada do Ritz?”.
“OK. Jocas!”
“Xau”.

A Palmira não percebia como é que o Fernando tinha dinheiro para pagar quartos em hotéis tão caros. Mas também, não queria saber. O facto é que ele prestava-lhe montes de atenção. Não era muito simpático, mas ela sentia-se mulher quando estava com ele. Desejada. E de vez em quando ele até lhe fazia um minete, coisa que o marida dela nunca tinha feito.

Entretanto, os colegas começaram a voltar do almoço e o Fernando levantou-se para ir almoçar. Saiu do edifício e atravessou a Rua Marquês da Fronteira, subiu as escadas e entrou no Eleven. A abertura daquele restaurante tinha facilitado a vida do escrivão. Era próximo do tribunal e ele nunca corria o risco de se cruzar com algum juiz. Percorreu os olhos pelo “menu express” e decidiu que hoje ia escolher da lista normal.

por Ashitaka, Ougado.

5 Comments:

Blogger Lucy P said...

Fabuloso! obrigada Ashitaka :)

1:21 AM  
Blogger cristina said...

adorei! fez-me lembrar o "todos os nomes" de Saramago, mas muito mais picante! :)

1:58 AM  
Blogger ana said...

Está fantástico. Oh, isto vai ser emocionante!

2:17 AM  
Blogger Fuazona said...

Eheh! Adoro que o homem se chame Fernando!! é tao... apropriado.

Nao percebi se é heroi ou vilao :p

Despachem-se com os proximos!! quero ler!!

Parabens Vitriolica e a toda a gente que está a tomar parte, foi um raio de uma ideia a rocar os limites do genial.

10:58 PM  
Blogger Carpinttas said...

Ideia muito original, gostei.
Também tenho um blog onde estou a escrever uma história, e vendo este tenho que disser:
Parabéns! Está enorme e bem escrito, ainda tenho muito trabalho pela frente para sequer chegar as calcanhares deste blog...

3:42 PM  

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