Friday, June 16, 2006

Capitulo 2

Luís Gustavo Espinosa, pseudónimo literário escolhido por João Matias por achar o nome de baptismo demasiado vulgar e pouco erudito, fixou os olhos no ecrã do computador e releu o penúltimo parágrafo. “E, de vez em quando, ele até lhe fazia um minete.” Minete? Minete, minete… Minete. Não seria demais? Afinal de contas, era o seu primeiro esforço sério para escrever um romance e não queria correr o risco de afastar a devoção potencial de leitores futuros com palavra tão chocante. Minete. E havia ainda a possibilidade seguramente inevitável de os amigos e familiares o lerem e pensarem coisas do diabo a seu respeito. Que era o tipo de pessoa que fazia minetes, por exemplo. Não que houvesse nisso qualquer mal (não se considerava moralista e acreditava ter as ideias tão arejadas como o próximo) mas, pior do que o embaraço pela suposição da prática seria se alguém se mostrasse mais afoito e, em conversa picante, quisesse trocar impressões sobre o assunto. Porque Luís Gustavo (LGE em iniciais cuidadosamente escolhidas pelo método chinês do Feng Shui), aliás João, nunca tinha feito um minete na vida e não fazia ideia de como seria para além da mais básica metodologia. Das duas namoradas que tivera até então, a primeira, Cristina, tinha tido a honra de o estrear nas lides do divertimento horizontal a dois e cada sessão com ela deixava-o de tal forma aterrado que nem se atrevia a mudar de posição durante aqueles catorze segundos intensíssimos. A segunda, a Vanda, apesar do nome óbvio de valdevina, não gostava de exotismos e sempre repelira qualquer tentativa de inovar, conseguindo, mesmo assim, servir-lhe de inspiração para a Palmira da sua estreia como autor. Não por ter mamas fenomenais, que não tinha, por ser casada, que não era, ou sequer por ser dada a mudanças de penteado, mas apenas porque se apresentava ao trabalho na repartição sempre com saia de um negro galáctico (sem estrelas) terminando três dedos abaixo do joelho e camisa imaculada de branco virginal, indumentária que levara os colegas mais maldosos da Repartição de Finanças nº 4382 de Arcozelo a chamar-lhe “a catequista.”

“E, de vez em quando, ele até lhe fazia um minete.” A indecisão mantinha-se. Estava perfeitamente consciente do seu talento e sabia que uma primeira obra devia ser necessariamente marcada por algum arrojo mas até que ponto? Não seria levar a coisa longe demais? Arriscar-se-ia a ser rotulado de pornográfico e a não se livrar do rótulo para o resto da carreira? Arrojo sim mas sem exageros. Afinal, não se tratava de literatura de cordel mas de um romance sério com cabeça, corpo e membros. Ou com capa, lombada e páginas. Qualquer que fosse o paralelismo livresco mais aproximado. Seria o livro que mudaria de uma vez por todas o estatuto e o modo de vida de todos os funcionários de repartição espalhados pelo mundo, gastando o quotidiano numa interminável cruzada contra utentes que teimavam em não perceber que o funcionário estava ali para os servir e que apenas ele sabia qual a melhor maneira de o fazer mesmo que, a olhos leigos, esta pudesse parecer absurda, inútil ou mesmo disparatada. Era uma profissão ingrata e mal vista. E estava na altura de alguém a reabilitar.
Ao mesmo tempo, existiriam laivos de autobiografia. Pedaços embelezados da vida do autor com uma aura mais aventurosa e cativante. A sua carreira académica que, não sendo brilhante, conseguiu alcançar uma mediania ímpar. A infância calma e despreocupada. A sua paixão filatélica. E uma ou outra história ouvida de passagem e que tornaria sua a bem da literatura. Sem esquecer, claro, o momento decisivo que foi a opção pelo desprendimento do funcionalismo público e o seguimento da vocação servil, frustradas as sucessivas ambições de cursar medicina, arquitectura, engenharia agrária ou direito por “falta de méritos escolares,” tinham-lhe dito.

Para apimentar um pouco a coisa, tinha camuflado a sua repartição de finanças em Palácio da Justiça, consciente de que nem todos partilhavam do seu gosto pelos números e pelo preenchimento de formulários e anexos. Até no título já tinha pensado, ainda que apenas de forma provisória. Chamar-se-ia “Servidor Público: Crónicas da Essencial Burocracia” e, dentro da modéstia imposta pelos bons modos, sabia perfeitamente que era um excelente título. Talvez fosse mais do que meramente provisório.

Minete. A palavra parecia destacar-se no ecrã. Algumas linhas antes, tinha falado em mamas e isso já lhe parecia suficiente ousadia. Ainda por cima, tinha-as classificado como “fenomenais,” indicando que o autor não era assexuado e sabia apreciar uma boa mama quando a via. Mas minete?... Raios! E porque não? Minete, pois sim! Minete e mil vezes minete! Era preciso dar a cara pelo que sabia estar certo. O autor era ele e apenas a ele lhe cabia escolher que palavras usar e chocando quem houvesse para chocar. Minete seria. De vez em quando, fazia-lhe um minete e até usava a língua toda. Lambuzava-se e ainda a cobria com creme de mil-folhas e dizia adeus à dieta numa verdadeira orgia pasteleira. Se preciso fosse, ainda ia buscar uma taça de cerejas e usava-as para fins libidinosos e perversos e sem se preocupar com sítio para depositar os caroços. Ninguém tinha nada com isso. O autor tinha decidido e não havia volta a dar-lhe.

Minete. A palavra persistia. Passou os dedos pelo teclado, guardou o trabalho e levantou-se da secretária para procurar um mil-folhas, abandonando um ecrã brilhante e limpo de minetes. “De vez em quando, dava-lhe beijos de tirar o fôlego,” pensara a Palmira.

por Renato Carreira, Inepcia.

3 Comments:

Blogger paulo said...

muito bom!

acho que a expressão "orgia pasteleira" merece um lugar de destaque na literatura portuguesa...

3:01 AM  
Blogger Lucy P said...

há! também acho.

5:02 AM  
Blogger ana said...

Impróprio para diabéticos, mas apetitoso.

3:35 AM  

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